domingo, 7 de junho de 2009

Ultima frase

Se encaravam há mais de cinco minutos. Um fio de suor descia pelo lado esquerdo de seu rosto. As palavras de repente não faziam mais sentido, tudo o que era necessário dizer podia ser expressado pelos olhos de ambos. A chuva castigava as janelas de madeira podre daquele velho casebre, e cada nova lufada fazia a pequena lâmpada pendurada pelo fio no teto tremer e vacilar em seu brilho. As sombras dançavam na parede de pintura descascada, gigantes formas grotescas balançando ao ritmo da chuva.

Sentavam de frente um para o outro em duas caixas de madeira, única mobília na sala. Apesar da chuva forte, fazia calor. Um calor que a pequena lâmpada tratava de amplificar, fazendo-os suar, fazendo com que o hálito dos dois se misturasse mais depressa. O cheiro de bolor ficava cada vez mais fraco, mais tolerável. Ou talvez apenas se acostumaram. Ou talvez o cheiro ácido de suor estivesse ficando mais forte. Ele limpou o suor do rosto dela com um lenço vermelho, um vermelho vivo que parecia deslocado dentro daquela sala, tímido perante o cinza dominante. Ela agradeceu com os olhos, mas manteve seu silêncio. Ele sorriu, aquele sorriso forçado de sempre, como se sorrir lhe provocasse dor. A boca sorria, mas o sorriso não alcançava seus olhos. Ao contrário, os olhos pareciam queimar em dor cada vez que ele se forçava a sorrir.

Continuaram conversando com os olhos por muito tempo. Vez ou outra um clarão invadia as frestas da parede, um trovão quebrava o silêncio segundos depois. Ela o fitava, aquele rosto tão familiar e ao mesmo tempo tão estranho, a camisa marrom amarrotada, o jean surrado de sempre, e as botas. Sempre sentiu uma atração estranha por aquele par de botas, aquele couro cansado, aquela fivela enferrujada pelo tempo e pela falta de cuidado. Era realmente uma bota muito feia, mas que ainda a atraia, da mesma forma que o bandido exerce um certo fascínio em certas mulheres. Seu olhar era agora indecifrável, mostrava dor e prazer na mesma proporção. Havia um terceiro sentimento, mas ela não conseguia qualificar.

Ele analisava o corpo da garota enquanto planejava o que dizer. Será que ele tinha mesmo que dizer algo? Não se pudesse evitar. Por mais que evitasse pensar no assunto, aquele corpo ainda o atraia. Muito. Ainda mais quando ela usava aquele vestido branco, leve, agora transparente por causa da chuva. Sempre se amaram pelos motivos mais estranhos, nunca era a beleza física, nunca a inteligência. Na verdade ― pensava agora ― nunca havia entendido o porque se amavam. Mas agora era tarde para entender e o máximo que ele podia esperar era não ter que falar nada. Não mais.

”Seria tarde demais?” ― o pensamento a assaltou com violência. Uma última esperança, como se um anjo tivesse soprado a frase em seu ouvido. Seria tarde demais? Olhou para os olhos a sua frente e entendeu que talvez fosse. Talvez sempre tivesse sido tarde demais. Só não quisera acreditar antes. Seria melhor tentar? Falar alguma coisa? Se pudesse evitar, preferia não dizer nada. Não hoje. Não desta vez.

Ele suspirou pesado e olhou pela janela, parecia buscar a posição da lua para entender o horário. Sem lua. Só a tempestade varrendo a floresta que os envolvia. De alguma forma, ele sabia que era hora, lua ou sem lua. Decidiu não se levantar, não queria a assustar ou a prevenir. Se levantasse teria que dizer algo, melhor ficar sentado e tentar ser breve. Ela percebeu sua indecisão e sentiu que era o momento. Se fosse tentar uma última vez, teria que ser agora. Ergueu os olhos verdes, suas duas esmeraldas ― como ele gostava de chamar ― e o encarou. Tentou manter o olhar calmo, mas uma mistura de pânico e insolência teimava em transparecer. Balançou a cabeça com força, jogando os cabelos loiros para o lado esquerdo, ela sabia o quanto ele gostava. Abriu a boca para falar, fechou-a novamente. Por fim, conseguiu forçar as palavras no mesmo instante em que ele levantava seu braço direito, o cotovelo colado ao corpo, sua marca registrada. “Eu acho que nós…”.

Ele olhava fixo para a fumaça que saia do cano cromado, não queria olhar para ela. Não hoje. Não nesse momento. Ela havia tentado dizer algo, ela tinha dito algo sobre “nós”. Ele iria imaginar o final daquela frase todos os dias enquanto vivesse, nunca saberia a resposta. Ponderou que talvez teria sido melhor se tivesse deixado ela terminar a frase. Não, não seria. E no fundo ele sabia disso. Se escutasse a frase, teria vacilado, teria considerado. E acima de tudo, não teria conseguido puxar o gatilho.

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